Não há Vagas


Jack era um cara que morava dentro de outro cara.
Era bom morar dentro do Herman. Como o próprio nome, Herman também era meio idiota. Mas era forte, e como caras fortes dificilmente se dão mal na vida Jack ficava confortável aspirando a fumaça do cigarro que ele fumava, tomando o álcool que sobrava, essas coisas que toda a segunda personalidade de alguém costuma fazer. Também dormia mais do que ficava acordado, vez ou outra assumia a transa e estapeava a bunda da mulher do Herman; assim tocava a vida. Jack não gostou muito quando Herman se casou, mas acabou aceitando. Sempre é bom ter uma bundinha dentro de casa e afinal traição existe para quê? Herman também tinha prós como um emprego que permitia muito tempo de ócio para Jack sacanear com suas memórias. O grandalhão trabalhava fazendo pedais de guitarra. Como todo bom vagabundo acomodado se empenhava pouco, mas ainda assim garantia seu sustento (e o de Jack). Quando a grana apertava deixava os pedais e ajudava algum amigo a dar uma pintura em casa ou amassar cimento.
Sua mulher era o oposto. Era sócia de uma clínica de estética. Não era do tipo que fazia calos nas mãos trabalhando, mas comparada a ele era praticamente um Henry Ford da cosmetologia. Eram felizes juntos, mas Jack andava colocando as asinhas de fora na vida de Herman, e ela (que precisaria de uma trena para tirar a medida da língua) explodia seu saco a cada discussão. Jack aconselhava Herman a enfiar a mão na cara da mulher e depois dar uma boa trepada no estilo “a vida como ela é”, mas a vida de Herman tinha muito mais de Bozo do que de Bukowski. Ele era um banana e tudo bem para o Jack desde que não atrapalhasse a sua estadia dentro dele — exatamente o que começava a acontecer.

Manhã de quinta:
— Herman, por favor, né? Olha só o chão da cozinha. Tá todo marcado com a sola de seu sapato nojento — reclamou Elaine.
De novo, pensou Jack.
— Quer que eu faça o quê? — perguntou Herman. Jack sentiu vontade de esbofetear a parte da cabeça que era de Herman, mas não quis arriscar um derrame. Cérebros pequenos sempre são um problema quando se trata de guardar duas ou mais pessoas...
— Tira o sapato né? Já não mandei?
Manda ela se fodê cara! Não deixa ela te tratar assim! Puta merda!
— Não vou fazer isso — disse Herman. Não seria um nipônico andando de meias pela casa. Jack dentro dele se sentiu todo vitorioso. Estava quase acessando um filminho de memória mais quente para perder umas horas vadiando. Mas Herman tirou o sapato (como sempre).
— Melhor assim — cacarejou Elaine. Jack teve cólicas de raiva.
Jack estava irritado há tanto tempo que nem sabia mais se queria permanecer nervoso dentro de Herman ou se anular para ter uma velhice tranquila. Garantido ou não dentro da cabeça oca do Herman, ele se estressava com a falta de testosterona do colega. Nem de troco errado (para menos) ele reclamava. Era uma moça no corpo de um troglodita. Já a moça da relação, Elaine, começava a ser um saco de gelo na cama. Herman não se importava, mas Jack? Ele ficava maluco. Tentou por semanas fazer com que o grandalhão fosse até um prostíbulo ou pegasse a irmã de seu melhor amigo que dava mole para ele. Herman parecia um capado. Jack achava que ele tinha algum outro problema sério além da falta de atitude. Perdera horas vasculhando aquela cabeça de merda atrás de um defeito e tudo o que encontrou foram esquilinhos, coelhinhos e outras coisas fofuchas. Herman nem parecia homem às vezes.
Uma das tentativas frustradas que Jack jamais esqueceria foi quando tentou convencê-lo a transar com sua cunhada. Um furacão de mulher. Jack achava que ela queria transar com Herman só para competir com a irmã e adorava a coisa toda. Atiçou-o como pode projetando suas piores insanidades dentro da mente de Herman. O que ele fez? Confessou-se na igreja.
Quinta-sem-sapatos era só mais um dia na vida de Jack e Herman onde Elaine estava de folga — o que significava que eles ralariam como uma escrava gostosa nas mãos da sinhaninha (sem direito a sexo e mordomias com o barão; claro).
— Amor? Lava essa louça para mim? Pelo menos pediu com jeito, pensou Jack.
— Claro — Herman pegando a buchinha. O outro se retirou de cena enquanto o esposo agradava a megera que nem sexo decente dava a ele. Jack calculava se ela estaria tendo um caso. Ficou excitado com isso e resolveu assumir a “parada” ali mesmo. Deixou a louça como estava e partiu pra cima. Elaine estava passando paninho pela casa, levantando mais sujeira do que tirava.
Rabão, pensou Jack enquanto Herman dormia em algum canto.
Com a psique mais fraca, ele não tinha consciência que dividia o cérebro com outro. Isso o levou para alguns psicólogos e a tentativas inúteis de diagnosticar seus apagões. Claro que não encontraram Jack lá dentro. A cabeça oca de Herman deixavam quilômetros onde podia se esconder.
Jack já chegou todo armadão roçando o rego da esposa de Herman.
— Sai Herman. Tô ocupada não tá vendo.
Jack putaço da vida pegou a mão de Elaine e meteu dentro de sua calça fazendo-a encontrar uma das poucas coisas que Herman tinha de bom: um cacete enorme e cheio de veias. Ela arrancou a mão com tudo arranhando o caralhaço do parceiro.
— Sua vaca — disse Jack. Mal viu quando ela armou o tapa, mas saiu de cena antes do disparo.
— Plaft!
Herman ficou até tonto com a explosão. Inclusive a expressão ficou tonta (mais tonta). Elaine encarava-o furiosa enquanto ele voltava a si.
— Que foi?
— Cafajeste!
— Que foi que eu fiz “Laine”?
Seus olhos fritavam os dele. Muito cômoda essa desculpa de “apagar” a toda hora, pensava ela. Ele já havia feito isso antes...
Como quando ele encheu a cara a caiu no meio da cozinha rasgando o queixo. Ou quando acertou o “buraco” premiado na hora do sexo sem que ela tivesse deixado. Ela até gostou, mas achou um completo absurdo ele nem pedir e chegar arrombando a seco. Se pedisse com jeitinho teria deixado do mesmo jeito.
Isso era outra coisa que Jack detestava no co-casamento com ela. Tudo tinha que ser extra-delicado. Como se Herman fosse uma bicha vestida de algodão e não um homem de quase dois metros com bíceps de lenhador. Até para responder que já tinha levado o lixo para fora ele precisava ser uma virgem delicada. Jack não gostava de vê-la tratando um homem assim, mas principalmente tratando uma “meia-moça” feito Herman. O grandalhão não sabia se defender de uma mulher e Elaine era praticamente uma gerente da gestapo. Não era a toa que quando Jack assumia o sexo dava umas pancadas nela. A safada adorava, mas ele exagerava. Elaine não entendia quando de repente a violência acabava e o babacão romântico do Herman voltava à cena, com a cara de tonto de sempre dizendo: “Apaguei” todo gozado nos pelos.
— Deixa prá lá Herman. — respondeu enquanto Herman que massageava o rosto vermelho com cinco dedos em auto-relevo.
Saiu confuso e sentou-se no sofá-igreja-intocável da sala para ler um livro. Livro de horror. Uma das únicas coisas que Jack e Herman tinham em comum: adoravam terror; filmes, livros, qualquer porcaria que esguichasse sangue. Liam agora: livros do mal — coletânea, uma edição especial com vários autores. Seis livros com capa de aço (é... aço mesmo!). Herman sabendo da implicância da esposa com o maldito sofá sentou-se quieto e meticulosamente cuidadoso evitando que seus pés encostassem no tecido sagrado. Jack relaxou junto e ocupou meio hemisfério partilhando da leitura. Estavam juntos afinal, o que era bem raro. E nesses momentos Jack adorava aquele monstro idiota. Adorar era pouco. Ele o idolatrava apesar de toda sua aparente covardia relacionada à Elaine. O grandalhão era um bom homem, um homem que sempre seria melhor que Jack.
Sua parte na relação “dual” era assumir quando alguém abusava de Herman. Como quando tentaram fazer na sua primeira briga de colégio (e primeiro apagão). Eram três contra um. Jack assumiu e arranjou logo um pedaço de madeira cheio de pregos esquecido pela rua. Deixou os três jogados no chão e Herman com a fama de garoto mal da escola.
Mas Jack sentia algo diferente em Herman de uns tempos para cá. Uma temperatura diferente da de sapo na água dele. Hoje estava mais forte e ele estava mais para um sapo no sal. Seus pensamentos estavam embaraçados. Nada da calma inicial de professor de mestrado que costumava coordenar tudo dentro dele. Estava tudo nebuloso e selvagem ali. Jack ignorou e imergiu na leitura. Elaine de novo deu o ar da graça concentrada em atrapalhar o marido.

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